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1984 (Resenha)

Postado originalmente no Cultura Nerd e Geek, em 29/12/2016

Em um futuro distópico pós-revolução, um governo totalitário controla todos os aspectos da vida de seus cidadãos. As pessoas não vigiadas 24 horas por dia, relacionamentos afetivos de qualquer tipo são desencorajados, comportamentos “não ortodoxos” podem render uma visita da polícia e de tempos em tempos sujeitos considerados perigosos somem não apenas das vistas, mas da história. Para todos os lados, cartazes com a figura do mesmo homem, seu líder, onde se lê “O Grande Irmão está te observando”.

Antes de começar minha resenha do 1984 de George Orwell, publicado pela primeira vez em 1946 , eu vou ser sincero com vocês: Esse é meu livro preferido de toda a vida, então vou fazer um esforço para que o texto saia imparcial, já adiantando que isso provavelmente não vai acontecer.

Como a outra grande obra de Orwell, Revolução dos Bichos, 1984 lida com o totalitarismo do governo a partir de uma revolução aparentemente bem intencionada, e com as ferramentas utilizadas por esse governo para manter seus cidadãos na linha, convencê-los de que a vida está melhor sob o poder do grande líder, o Grande Irmão, e se livrar dos irrecuperáveis ou perigosos.

Nesse universo, a sociedade é dividida em três classes: O Partido Interno (aqueles mais próximos do poder), o Partido Externo (funcionários públicos, mas não membros do governo) e os Proles, a maior parte da população, que o governo controla de forma mais solta por não terem conhecimento ou organização o suficientes para apresentar algum risco.

Nosso protagonista é Winston Smith, um membro do partido interno, que tenta ao longo da obra dar vazão aos seus questionamentos quanto àquela sociedade sem pagar com a vida por isso. Com a sorte de morar em uma casa onde é possível sair da vista da teletela, um monitor que transmite as propagandas governamentais enquanto filma e grava cada um dos membros do partido em suas casas e lugares públicos todos os momentos do dia, começa a escrever um diário mesmo sabendo que o simples porte de papel e caneta são crimes.

Winston trabalha no Ministério da Verdade reescrevendo livros e jornais de forma que nenhuma informação do partido se contradiga, como por exemplo, contra quem sua nação está em guerra no momento, e apagando registros de existências de indesejáveis, que não devem ser apenas executados, mas ter qualquer prova de sua existência completamente eliminada.

O ponto que mais gosto no livro, e que acredito ser interessante para qualquer amante da comunicação, são a aplicação do “duplipensar”, uma forma de impedir que a população enxergue conflitos na ideologia ou no funcionamento do governo, e a “novilíngua”, língua oficial do Estado, que é pouco a pouco simplificada e enxugada, tornando cada vez mais difícil para que as pessoas exprimam conceitos complexos, e por consequência, que os absorvam.

O conceito de “duplipensar” em uma de suas descrições:

“O poder de manter duas crenças contraditórias na mente ao mesmo tempo, de contar mentiras deliberadas e ao mesmo tempo acreditar genuinamente nelas, e esquecer qualquer fato que tenha se tornado inconveniente.”

1984 não é sempre uma leitura fácil, não por usar uma linguagem particularmente elaborada, mas por sua narrativa áspera e a quantidade de informação que dispõe diversas vezes, mas (junto com Admirável Mundo Novo) é uma leitura que ajuda muito a entender o atual momento político do mundo. É um clássico, e por isso mesmo não posso evitar de recomendar para qualquer um que ame literatura.

 

Samantha

Samantha! (Resenha)

Há muito, muito tempo atrás, em um período misterioso, caótico e confuso conhecido como Televisão Brasileira dos Anos 80, uma garotinha de 5 anos desponta como uma das maiores estrelas do país ao liderar um grupo infantil. Infelizmente, o tempo passa e não tem como ser uma estrela mirim aos 40 anos.

Samantha!, também resenhada pelo Douglas no Sem Frescura, é a nova produção brasileira do Netflix, uma comédia que, assim como Bingo – O Rei das Manhãs, narra uma versão fictícia e mal-disfarçada da  vida de uma celebridade da TV nacional dos anos 80. Emanuelle Araújo interpreta a personagem título, uma ex-celebridade infantil, líder do grupo Balão Mágico Turminha PlimPlom,  que nunca deixou de ser famosa em sua mente e está disposta fazer com que a realidade se adeque a isso. O elenco ainda conta com Douglas Silva, interprete de Acerola de Cidade dos Homens, como Dodói, o marido da protagonista, um rapper jogador de futebol recém-saído da cadeia.

A primeira coisa que me atraiu na série foi a sensação de semelhança com Bingo, um filme que pessoalmente gosto muito, mas os primeiros minutos já deixam claro que o foco da série é completamente diferente. Se em Bingo tínhamos um drama que era por vezes engraçado por contar a vida de uma pessoa engraçada, aqui temos uma comédia tradicional.

Samantha! tira sarro com gosto das (sub)celebridades brasileiras, uma verdadeira metralhadora de referências da cultura pop local. Vai de participações especiais à citações nominais, incluindo ainda algumas piadas visuais fáceis de serem captadas por quem já se entregou em algum momento ao honroso passatempo de ficar a par de fofocas da vida de gente famosa. Tem um flashback que envolve uma perna mecânica, por exemplo, que faz rir tanto pela sacada quanto pela simples cara-de-pau da série em fazer troça daquela situação. Todos os episódios assistidos, ainda vale a pena discutir com amigos e checar se você pegou quem era aquele cantor muito mais velho do que parece e viciado em casamentos, ou aquela estrela mirim dissimulada de nome cafona.

Mas o grande trunfo da série é o elenco afiado, principalmente Emanuele e Douglas, que nos fazem rir e nos apaixonar por personagens que seriam muito fáceis de se odiar. Samantha é deslumbrada, politicamente incorreta, completamente desconectada da realidade e se sujeita a qualquer coisa por um holofote. Dodói é um encostado tentando recuperar sua esposa e aprendendo na marra, enquanto erra bem mais que acerta, o que é ser pai.

Seus filhos são dois jovens precoces que não conseguem fazer amizade com crianças da mesma idade. Cindy (Sabrina Nonata) por estar com a cabeça em alguma tentativa de mudar o mundo pela justiça social, Brandon (Cauã Gonçalves) por ser basicamente uma versão mais simpática de sua mãe. Temos ainda Daniel Furlan no papel de Marcinho, o obrigatório empresário inescrupuloso que ao mesmo tempo tenta convencer Samantha a sacrificar o restinho de dignidade que lhe resta, chutá-la quando acha que ela só trata prejuízo e se humilhar de volta cada vez que ela ganha qualquer parca atenção midiática.

Uma série rica em referências, com um humor ágil e um programa excelente pra quem quer simplesmente se entreter, um alívio em meio a produção nacional do Netflix que tem um foco grande em temas mais pesados. Se você gosta da trasheira da vida dos famosos, de programação vespertina da TV aberta e dos anos 80, é imperdível. Ainda mais agora que foi renovada pra sua segunda temporada, provando que mais do que um sol, Samantha! é uma estrela.

 

E pra quem não consegue tirar a trilha sonora da cabeça, como eu, as músicas da Turminha PlimPlom estão disponíveis no Spotfy!

 

 

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Bingo: O rei das manhãs (resenha)

Postado originalmente no Cultura Nerd e Geek, em 08/09/2017

Nos longínquos anos 80, antes do mundo ser atingido pela onda do politicamente correto, um ator de pornochanchadas se transforma no grande rei da programação infantil brasileira, encarnando um palhaço viciado em cocaína. Parece bizarro, mas meio que aconteceu desse jeito mesmo.

Neste colorido drama brasileiro, Vladimir Brichta interpreta Augusto Mendes, um ator de pornochanchadas na época em que o gênero estava em seus suspiros finais que, decidido a dar pra carreira um rumo menos constrangedor, que orgulhe sua mãe e, principalmente, seu filho, acaba se tornando o palhaço e apresentador infantil Bingo, uma versão ficcional do Bozo – nome que não foi usado por questões de direitos autorais.

O filme se ocupa basicamente de narrar a ascensão e queda de Augusto, acompanhando o orgulhoso ator por sua tentativa em se tornar estrela de novelas da Mundial, a campeã de audiência (uma referência engraçada de tão mal disfarçada), o teste com o gringo exigente que quer ter total controle sobre a qualidade da sua franquia, os tropeções nos primeiros episódios, até a chegada do sucesso profissional, atingido enquanto a vida pessoal se esborracha.

Vladimir interpreta o protagonista brilhantemente, conseguindo criar cenas engraçadas na figura de alguém que ganha a vida fazendo as pessoas rirem, ao mesmo tempo em que dá a carga dramática necessária para toda a complexidade do personagem. Há o orgulho de se tornar um sucesso como Bingo, mas o ressentimento de não poder revelar sua identidade em público e curtir a fama. Há sua mãe, uma diva decadente que sonha em voltar para a novela das 8 (Ana Lúcia Torre, fantástica também), que acaba ficando na mão durante uma noite de farra. E também há a paternidade, já que o ator queria seguir um caminho do qual seu filho pudesse se gabar (Cauã Martins, que, pela atuação, deve ser um adulto em miniatura), resultando em Augusto divertindo todas as crianças do país, menos aquela que motivou suas escolhas.

O filme também tem Leandra Leal no papel da diretora evangélica que Augusto quer seduzir, Emanuelle Araújo interpretando uma Gretchen que talvez seja mais Gretchen até do que a própria Gretchen, Augusto Madeira como o melhor amigo e cameraman que acompanha o protagonista em suas noitadas, além de participações de Domingos Montagner em seu último papel de cinema, como um palhaço de circo que treina o protagonista, e Pedro Bial, como o diretor da Rede Globo Mundial. Mas não se engane, mesmo que todos estejam muito bem onde foram escalados, Vladimir carrega o filme nas costas e ainda faz umas gracinhas pelo caminho.

Bingo é o primeiro longa como diretor de Daniel Rezende, montador do clássico Cidade de Deus (que lhe rendeu um Bafta e uma indicação ao Oscar), e se mostra muito competente na sua estreia ao entregar um filme que, além de contar com um ótimo roteiro e ótimas interpretações, é visualmente lindo, conseguindo ir da comédia ao drama de forma eficiente em segundos em cenas belíssimas, como a saída de Augusto do estúdio com as luzes se apagando às suas costas, um número musical que acontece meio de surpresa e a cena que registra o ápice do conflito entre o ator e sua personagem, minha favorita das três, mais no final. A direção de arte, que registra os exageros dos anos 80 sem perder a mão, e a trilha sonora, marcada pelas seleções em fita cassete do nosso protagonista, também são pontos altos.

Em resumo, Bingo: O Rei das Manhãs é um grande filme, cinema nacional de altíssima qualidade e uma obra que mostra que nem só de Wagner Moura e crônicas de desigualdade social se faz nosso cinema. Recomendo com força.

 

Brazil

Brasil – O Filme (Resenha)

Postado originalmente no Cultura Nerd e Geek, em 02/03/2017

Em uma sociedade distópica, movida por tecnologia complicada e ineficiente, e um Estado burocrático e autoritário, um mero erro de documentação coloca a vida de pessoas em risco quando o governo decide eliminar os cidadãos envolvidos ao invés de corrigir uma falha em seu sistema. Enquanto isso, um funcionário de baixo escalão busca a mulher, literalmente, de seus sonhos.

Brasil – O Filme (Brazil, 1985) é dirigido por Terry Gilliam, ex-membro do Monty Python, e, ao contrário do que o nome (e talvez o roteiro) indique, não fala sobre o Brasil, tendo sido nomeado a partir da versão em inglês da música “Aquarela do Brasil” (“Brazil”, em inglês) de Ary Barroso, que toca repetidas vezes durante o filme, geralmente como forma de reforçar o sentimento de ironia das cenas.

A história gira em torno de Sam Lowry (Jonathan Pryce), um funcionário de baixo escalão do governo, satisfeito em sua função apesar do desgosto de sua mãe rica, socialite e viciada em cirurgia plástica. Sam sonha com uma realidade em que ele é um herói com uma armadura alada que luta para salvar uma bela mulher e começa a ter problemas quando seu ar condicionado quebra. Tentando solucionar um problema burocrático na região pobre da cidade, encontra uma mulher idêntica a de seus sonhos.

A distopia retratada no filme lembra muito a do livro 1984 do George Orwell, com um governo obcecado em acumular e processar informações sobre tudo e todos, mas com algumas diferenças essenciais que fazem um não ser mera cópia do outro, como Brasil ser uma comédia de humor negro que representa uma sociedade hipercapitalista, sem uma figura igual à do Grande Irmão. O humor do filme geralmente aparece no absurdo das situações, como a mulher que tem que assinar várias vias de um formulário para que prendam seu marido, as pessoas que continuam seu jantar em um restaurante ou compras em lojas apesar de uma explosão terrorista ter matado dezenas de pessoas a menos de dez metros.

A sociedade criada por Gilliam é surpreendentemente rica para um filme não complementado em nenhuma outra mídia, dando ao espectador a possibilidade de deduzir muito sobre a forma seu funcionamento pelos detalhes de cena que nunca são comentados pelos personagens, como os vários cartazes espalhados pelos fundos dos cenários, a tecnologia com um ar steampunk, a forma como as pessoas só assistem aos mesmos filmes antigos, e por aí vai, sendo daquelas obras que recompensam quem as assiste mais de uma vez.

Engraçado, bizarro e perturbador, Brasil é uma obra de arte que, além de nos fazer refletir sobre o que o futuro pode trazer, também nos permite rever algumas coisas que o presente já nos oferece. Recomendadíssimo.